Hoje, a mídia não apenas influencia, mas “decide” pelos
outros poderes
Publicado originalmente no site da revista CULT, em 5 de
Abril de 2018
Lula na prisão: à espera do espetáculo televisionado
Por Marcia Tiburi
Sabemos que o maior de todos os poderes em nossa época é o
do que chamamos de MÍDIA. Legislativo, executivo e judiciário são poderes
menores perto do poder dos meios de comunicação. O conteúdo produzido pela
televisão, por exemplo, funciona como uma prótese de pensamento para o cidadão
alienado, mas também para magistrados, procuradores e outros atores políticos,
que se demitem do dever de refletir para julgar.
No Brasil, chamamos de “mídia” o que os portugueses chamam
de média, palavra que vem do latim, media (meios), plural de medium (meio).
Pronunciamos “mídia” como efeito da influência americana no senso comum
brasileiro. E, como todos sabemos, basta olhar, por exemplo, para a destruição
das empresas brasileiras a partir da Lava-Jato para se perceber que a
influência dos EUA em nossa nação não se limita ao vernáculo.
Sabemos que a influência da mídia é imensa em nosso país,
mas a própria questão dessa influência já ultrapassou todos os limites dos
jogos de poder que conhecemos até aqui. Hoje, podemos dizer que a mídia não
apenas influencia, mas “decide” pelos outros poderes. A própria
espetacularização das versões produzidas pela mídia são repetidas em atos
espetacularizados pelos agentes dos poderes menores que também querem aparecer
e ser elogiados na televisão e nos jornais.
Vimos o que aconteceu nesta semana. Um general usou a rede
social do Twitter para mandar recados à população. Certamente ele não estava
apenas trocando ideias com amigos em público. O tom do que ele disse era
ambíguo, podia ser interpretado de vários modos. Aliás, no Brasil, atualmente,
há uma espécie de “interpretacionismo” a céu aberto que de um lado parece
apenas fruto da incompetência de quem fala, mas de outro revela que a
ambiguidade no discurso é um jogo de poder que se beneficia com o efeito do
caos produzido pelo emissor. Naquela mesma noite, no Jornal Nacional, o
apresentador, um dos personagens mais mecânicos da cena brasileira, falava como
um robô a partir do tuíte do general. Quem tem algum sentimento cívico ou visão
democrática sentiu uma profunda vergonha alheia.
Há uma continuidade visível entre essa pequena cena
midiática de terça-feira, 3 de abril, e a cena de ontem, dia 4 de abril, no
STF, em que os ministros que votavam contra a constituição faziam um discurso
populista e, muitas vezes, incompreensível. Ninguém conseguia entender o que
dizia um Fachin, que chegou a citar doutrinadores que imediatamente vieram a
público declarar que o ministro não havia entendido o que eles escreveram, ou
uma Rosa Weber, que dizia ceder a uma maioria, que só era maioria por causa do
voto dela. Discursavam mal escondendo, atrás de palavras confusas e argumentos
sem pé nem cabeça, a finalidade político-midiática dos seus votos.
Um detalhe: o melhor jeito de acabar com o poder dos
poderosos é não lhes dar poder. Assim, se não acabamos com o poder da televisão
no dia em que nos negarmos a ser sua audiência, pelo menos somos capazes de
relativizá-lo e colocá-lo assim no seu devido lugar, um lugar que deveria ser
menor do que dos demais poderes. É claro que o Estado já deveria ter se ocupado
de regulamentar os meios de comunicação – como fizeram a França, a Inglaterra e
até os Estados Unidos -, mas os detentores do poder econômico que tomaram o
Estado brasileiro sempre se beneficiaram destes meios. Uma atitude
institucional precisa ser tomada (e nunca será com o governo do golpe que
depende da televisão), mas a atitude pessoal também é pragmaticamente
necessária. Essa atitude implica a dignidade que falta a muitos agentes em
todos os cenários. Não uso o termo “dignidade” em sentido moralista: uso-o em
sentido ético-pragmático.
Lembremos de Eichmann em Jerusalém e que não se negue que o
pessoal é político, que o lugar que cada um ocupa como cidadão ou funcionário
produz efeitos. A construção de uma outra sociedade, querendo ou não, passa
pelo lugar de cada pessoa, de cada singularidade que ocupa seu lugar político
no mundo, sobretudo como cidadão. Dignidade tem a ver com coragem. Falar de
dignidade em uma hora como essa pode parecer ingenuidade. Quem vai esperar
respeito à dignidade por parte de agentes que estão presos ao poder midiático?
Mas há resistência, como ontem demonstraram alguns poucos ministros.
Sabemos desde o Golpe de 2016, que depôs Dilma Rousseff,
para o qual ingenuamente não estávamos preparados, que há um jogo armado,
programado. Toda a “programação” do Golpe foi bem montada. Programaticamente
montada como um espetáculo. Como em uma série de televisão, o roteiro está dado.
Cada ator tem o seu papel. Direitos e garantias fundamentais devem ser
afastados para não impedir o final desejado pelos diretores e patrocinadores do
show. Há muitos capítulos que já vimos e todos esperam pelo capítulo final em
que Lula será preso.
Um final adequado para uma audiência sádica, que sente
prazer com o sofrimento e com a humilhação. Uma perversão que uma manifestante
antes do julgamento deixou explícita ao declarar que seria “sexy” pedir a
prisão do ex-presidente Lula da Silva.
Lula preso será um espetáculo de prazer visual para aqueles
que o odeiam, e será um momento de desprazer para aqueles que o respeitam. Sem
esse espetáculo, o papel exercido pelo juiz Sérgio Moro perderia o sentido e
ele seria relegado à insignificância a que estava antes de ser escalado como um
dos protagonistas da trama.
Com o espetáculo, esses atores canastrões conseguem uma
sobrevida pelo menos com aquela parte da população alimentada com a ração
envenenada do ódio produzido há tempos pela mídia.
Texto e imagem reproduzidos do site: revistacult.uol.com.br
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